1. A iniciativa
A iniciativa foi do Círculo Cultura e Democracia, com o envolvimento e grande empenho de um grupo de jovens criadores e inovadores da “nossa terra”. O mote era o de uma “radiografia criativa” do território que é o concelho de Arouca. Os resultados a que se chegou a todos trouxe grande satisfação, pela troca de experiências que permitiu e pela forma, e convívio, que a ela estiveram associados. Mas não foram, apenas, os resultados que foram importantes; também o foi o modo como na discussão todos estiveram expondo, questionando e sabendo ouvir; conversando, como se deve conversar.
2. Onde está a criatividade?
Os intervenientes convidados centraram a sua reflexão nas seguintes áreas da sua criatividade: o bem-estar e a alimentação, a energia, a fotografia, a moda, a música e a programação. Deram testemunho da construção do processo criativo, em que cada um se envolveu, bem como dos resultados obtidos. Todos esses testemunhos provocaram em todos os restantes participantes grande curiosidade, pelo que o debate foi intenso e esclarecedor.
Ficou o gosto por que possam continuar experiências idênticas. Sobre a radiografia criativa não se considerou que as portas deveriam ser seladas. Pelo contrário, ficou o desafio para ir mais além. Em particular, sentiu-se a necessidade de unir pontas soltadas durante o debate, mas que de alguma maneira ficaram a esvoaçar. Para isso, deixo, abaixo, algum contributo.
3. Criatividade e inovação
A criatividade exige a existência de capacidade para gerar o novo, produzir ideias originais potencialmente capazes de dar resposta a necessidades múltiplas, de consumidores e produtores, na sua dimensão individual e de vivência em sociedade.
Há, no entanto, que distinguir entre o processo gerador de novas ideias e o processo que transforma essas ideias em algo que dá resposta a problemas concretos. Ao primeiro, costuma designar-se por criatividade e ao segundo, por inovação. Na linguagem corrente, contudo, é frequente a utilização de uma, ou de outra das designações, de forma indiferenciada para se referir o conjunto dos dois processos. Na discussão que tivemos, a designação “criatividade” esteve presente para designar os dois processos e daí não resultou qualquer inconveniente.
4. Os mercados
As pontas que, do meu ponto de vista importa unir decorrem da existência, do espaço (território), de um tempo de referência (horizonte curto ou horizonte longo) em cada processo, e da existência dos utilizadores da inovação, os consumidores (um produto de consumo) ou produtores (um equipamento), tomados individualmente, ou considerados através da sua organização em sociedade (saúde, educação, cultura, segurança). A inovação não pressupõe, necessariamente, necessidades pré-existentes. Será assim na grande maioria dos casos, mas não são poucos aqueles em que é o próprio processo criativo que suscita, junto dos consumidores, novas necessidades.
Em ambos os casos estamos perante um mercado, só que no primeiro caso se trata do mercado dos bens privados e no segundo, do mercado dos bens públicos. Não devemos, por isso, cair na tentação de julgar a bondade de todos os processos criativos pela avaliação dos seus resultados no mercado, quando aquele que temos com referência é, apenas, o mercado dos bens privados.
5. O espaço e o território
O espaço (território) e o tempo constituem filtros do que deve ou não ser considerado como criativo e inovador. Vejamos o espaço. Num determinado território pode, por geração endógena, ter surgido um processo ou um produto que dá uma resposta decisiva a uma necessidade premente aí existente, por ex. um mecanismo de extração de água do subsolo (não é uma necessidade de uma pessoa em particular, mas do conjunto das pessoas que vivem naquela comunidade, ou território). O mesmo equipamento poderia ser considerado de nenhuma utilidade num outro território (desenvolvido), porque aí já está disponível uma tecnologia muito mais avançada, ou porque é possível aceder à água sem ter que recorrer aos recursos do subsolo. Ora esta tecnologia mais avançada poderia ser considerada de nenhuma utilidade no território menos desenvolvido.
Consideremos, agora, o tempo. Entre o processo criativo e o processo inovador existe, em geral, alguma descontinuidade. Uma nova ideia não se transforma, imediatamente, numa inovação. A duração dessa descontinuidade depende da área ou do território de referência. É um erro considerar que, por ex., no campo da cultura, não há criação, e sucesso, se os eventos que os possam suportar não mobilizam, imediatamente, multidões.
Do mesmo modo, não é porque uma inovação colocada no mercado dos bens e serviços privados começa por ter uma procura nunca antes esperada, que está necessariamente garantida a sua sustentabilidade no tempo longo. Ouvi já no fim da sessão um comentário que não hesito a aqui vos trazer. Dizia um dos participantes: “se a criação só fosse isto então o nosso celebrado Fernando Pessoa estaria hoje reduzido apenas a pó na sua tumba. Durante toda a sua vida Fernando Pessoa escreveu para a arca. Só muitos anos depois da sua morte é que a curiosidade dos estudiosos os levou a abrir a arca e a tornar-nos beneficiários do seu extraordinário génio criativo”.
6. Radiografia criativa ou radiografia da criatividade
O tema que fez com que nos encontrássemos foi o de uma “radiografia criativa”. Talvez valha a pena interrogarmo-nos se o que se pretendia era fazer uma radiografia criativa ou uma radiografia de criatividade. Creio que o modo como se desenrolou o debate é mais compatível com a segunda alternativa. No fim de contas, a interrogação presente em todos os espíritos era a de procurarmos saber quais eram as condições que deveriam ser preenchidas para que a criatividade possa brotar num determinado espaço.
7. Território criativo ou criatividade no território
Não fomos capazes de sistematizar, convenientemente, as ideias, acerca destas condições. Por falta de espaço, não o farei, também, neste texto. Mas ainda vale a pena interrogarmo-nos sobre qual é o sentido de procurarmos saber se um território é ou não, criativo. Creio que tal só tem sentido se com isso quisermos saber se um território (Arouca, por ex.) possui, ou gera, fatores de criatividade.
Os territórios, só por si, não são ou deixam de ser criativos. Quem é criativo são as pessoas que o habitam ou a ele se referem. Mas é evidente que as pessoas desse território podem ser mais ou menos criativas conforme nele encontrem, ou não, condições facilitadoras da criatividade. Não deixa de ser verdade, contudo, que quanto maior criatividade existir num território maiores serão as condições para que maior criatividade se acrescente. É evidente que não há nenhum inconveniente que a um território, que possui mentes criativas, se possa designar por território criativo. Inconveniente só haverá se descansarmos na ideia de que por o território ser considerado como criativo já estamos dispensados, nós próprios de sermos criativos.
Manuel Brandão Alves